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Exame toxicológico na primeira habilitação: uma política ineficaz e dispendiosa

Uma nova lei aprovada no Congresso Nacional impõe aos candidatos à primeira Carteira Nacional de Habilitação (CNH) a obrigatoriedade de se submeterem a um exame toxicológico para verificar o uso de substâncias psicoativas. Embora o combate ao consumo de drogas no trânsito seja um objetivo legítimo e necessário, essa medida específica é ineficaz e representa uma distorção da política de segurança viária.
O primeiro ponto crítico é o ônus transferido ao cidadão. Se o exame toxicológico é uma política de saúde pública, por que seu custo é imposto ao próprio indivíduo, que deve “provar” que não consumiu drogas nos últimos meses? Essa inversão do ônus da prova — exigindo que o cidadão comprove sua “inocência” — é incompatível com os princípios básicos de justiça. O Estado deve proteger, sim, mas com base em evidências e estratégias racionais, e não penalizando preventivamente milhões de brasileiros. É uma espécie de “os justos pagam pelos pecadores”.
Além disso, o exame não impede o consumo de drogas durante a condução de veículos. Trata-se de uma tecnologia diagnóstica que apenas detecta vestígios de substâncias no organismo com base em amostras de cabelo ou unhas, colhidas uma única vez. O teste não mede se a pessoa dirige sob efeito de entorpecentes — apenas se ela os consumiu nas semanas ou meses anteriores. Isso nada diz sobre sua conduta ao volante. É uma ferramenta de identificação, não de fiscalização em tempo real.
E nem mesmo sua “larga janela de detecção” — muitas vezes usada como argumento favorável — é um ponto forte. Na prática, o intervalo entre a coleta e a obtenção do resultado pode ser de semanas, e o exame só flagra o uso dentro de um intervalo específico antes da coleta. Portanto, o período em que o condutor permanece sem fiscalização alguma (a verdadeira “janela aberta”) é muito maior do que o período que o teste consegue monitorar. A sensação de segurança é ilusória. O jeito certo de fazer essa fiscalização é com o drogômetro, que com uma amostra de saliva detecta se o indivíduo está conduzindo sob efeito de substâncias psicoativas.
Outro erro é o uso instrumental do processo de habilitação como plataforma para políticas de combate às drogas. A formação de condutores deve focar em aptidão cognitiva, psicológica e técnica para dirigir com segurança — e não em estratégias de saúde pública genéricas. A inclusão do exame toxicológico na etapa de obtenção da CNH distorce a natureza do processo e amplia sua complexidade burocrática, afastando ainda mais jovens e trabalhadores do acesso à CNH.
O argumento econômico é ainda mais contundente. Estima-se que cerca de 2,7 milhões de pessoas tiram a primeira habilitação por ano no Brasil. Com um custo médio de R$ 150 a R$ 250 por exame, estamos falando de um mercado compulsório de aproximadamente R$ 500 milhões por ano destinado a poucos laboratórios credenciados que não têm qualquer compromisso com a segurança viária.
É importante lembrar que, no caso da primeira habilitação, o exame busca detectar consumo de drogas antes mesmo de o candidato estar autorizado a dirigir. Isso significa que, mesmo que o exame acuse consumo anterior, não há impacto direto sobre a segurança no trânsito, já que esse indivíduo ainda não podia conduzir veículos. Mais grave ainda: uma vez habilitado, o novo condutor não estará mais submetido ao exame toxicológico. Ou seja, o teste flagra comportamentos irrelevantes do ponto de vista da segurança viária e ignora o que realmente importa: a conduta ao volante.
Por fim, essa exigência impõe mais um custo ao já oneroso processo de habilitação, que pode ultrapassar R$ 3 mil em alguns estados. Para jovens de baixa renda, trabalhadores autônomos e cidadãos em busca de melhores oportunidades, essa barreira adicional é um desestímulo ao ingresso formal na mobilidade urbana.
Em vez de recorrer a medidas simbólicas e de eficácia questionável, precisamos investir em soluções que realmente promovam segurança no trânsito: formação de qualidade, fiscalização inteligente, uso de tecnologias adequadas e ações educativas contínuas. Tornar o processo de habilitação um campo de batalha contra as drogas só serve para punir os mais vulneráveis e enriquecer poucos.
David Duarte Lima é doutor em Segurança de Trânsito
Fonte
David Duarte Lima